sábado, 1 de novembro de 2014

Crônica de Júlia Lopes de Almeida : Ah! Os senhores feministas!

Ah! os senhores feministas! pudesse eu enforca-los a todos com uma só corda...
São as suas teorias desordenadas, subversivas, é a tragédia burlesca das suas justas reivindicações, que têm posto a sociedade neste estado. Pois quando é que se viu nunca uma senhora casada e mãe de filhos, como é a minha, não estar em casa à hora em que o marido entra para jantar! De mais a mais, nem deixou dito para onde ia.
Plena liberdade, hein? Os tempos aconselham estas independências, aproveitemo-las!... E o marido? O marido que ceda, que se sujeite, que sorria, que diga amém!
Vem para casa morto de fome? que espere pela senhora, que virá depois e quando muito bem quiser, de... de onde? do desconhecido! Perfeito; é assim mesmo. Se eu aventurar qualquer observação, ela já deve estar suficientemente instruída para me responder:
- Não me fizeste esperar ontem até as oito da noite, para jantar? Pois tão! E eu queixei-me? De modo algum; logo... os direitos são iguais... Vamos à sopa, sem rancor, e ao rosbife, sem discussão... Diabo... estou sendo injusto... Terezinha tem sido sempre de uma submissão digna dos tempos medievais... querem ver que ela foi à minha biblioteca e leu Ibsen, por acaso? hum... Terezinha não lê, nem por acaso! A razão deste seu primeiro movimento de independência deve ser outra... talvez queira experimentar-me! Pois, para castigo desse ensaio, o que eu deveria fazer, seria sentar-me à mesa com as minhas duas filhas, e comer tudo! Mas poderia eu comer alguma coisa estando nesta inquietação? Não! Sinto que engoliria nem uma colherada de caldo, vendo diante de mim o seu lugar vazio. Não é porque ela o enfeite muito... coitadinha! está cada vez mais magra e mesmo insignificante... mas só porque a sua obrigação de boa esposa é estar em casa, não fazer nunca sentir a sua falta, e estar sobretudo naquela hora sentada naquela cadeira, dirigindo o movimento do serviço! Minha mulher é-me tão indispensável à mesa, como o pão, o saleiro, a garrafa de vinho ou o guardanapo.
Mas tem graça! Quando janto lá fora com os amigos, nem me lembro dela, e, entretanto, em minha 
própria casa, não posso renunciar à sua presença... Ainda se eu tivesse tido aviso antecipado, talvez me resignasse; assim, não... qualquer distância que eu imagine, me parece de redobrada extensão, tal e qual como se eu ainda a amasse com aquele modo antigo...
Por onde andará ela a estas horas? Está farta de saber que venho para casa no bonde das seis e meia... mas esta circunstância, em vez de diminuir, julgo que aumenta a sensação estranha que me invade, de espanto e de aborrecimento! É esquisito, a casa parece-me maior... como se todas as paredes tivessem sido empurradas para um outro plano mais afastado... tem graça; estou como que dentro de um grande túmulo vazio; se der um grito, ouvirei o eco da minha voz como um lamento! De mais a mais, as crianças lá estão na mania do portão!
Ora, se há vinte anos uma senhora honesta, pacata, mãe de família, seria capaz de andar ao lareque pelas ruas da cidade à hora em que o pobre marido volta para casa, estafado de tanto trabalhar!...
Naqueles bons tempos, uma senhora de quarenta anos não tinha coragem de sair à rua sem sua capinha pudibunda e um toucado que atestava resignadamente a sua idade provecta...
Era submissão completa a todas as leis da vida. Hoje opõem resistência à tudo; até à idade... São terríveis! Mas por onde diabos andará minha mulher? logo hoje, que eu tinha tanta necessidade de desabafar... porque não há de ser as meninas que eu fale dos meus negócios!
Geralmente, minha mulher, queixa-se de que eu converso pouco; pois aí está: hoje vinha com tenção de conversar... de falar detidamente sobre aquela proposta do Teles... não para lhe pedir conselhos, as opiniões dela não me esclarecem nada, mas só porque, enfim, quando raciocino em voz alta, penetro melhor no sentido das coisas... As mulheres fazem às vezes umas objeções imprevistas, extravagantemente ingênuas, mas que não raro sugerem certos pensamentos aproveitáveis... 
Não é que eu associe Terezinha às minhas empresas de importância; coitadinha, que competência tem ela para isso? mas porque, expondo-lhe o caso; tenho de reduzi-lo à máxima simplicidade para a sua compreensão, e nessa ginástica apreendo muitas vezes sutilezas que me tinham escapado, quando ele me fora apresentado em bloco. Haverá homem que prescinda de alguém que o escute e em quem ensaie os efeitos de sua exposição? Por mim não tenho grande confiança na clarividência de minha mulher; não aceitaria as modificações que ela entendesse fazer aos meus planos; mas, como sei que ela tem ouvidos, uma razão, interesse pela "nossa" prosperidade, afis-me a refletir diante dela, em voz alta, sempre que se trata de assuntos embaraçosos. Embora eu não a interrogue, a sua presença tranquiliza-me, tal e qual como se ela assumisse toda a responsabilidade dos meus atos...
É uma espécie de prevenção para futuras arguições... Mau! lá passa o bonde das seis e meia e ela ainda não veio!...
Que raiva! estou como um homem que, tendo papel, pena e pressa de expandir idéias por escrito, vai abrir o tinteiro e encontra-o seco. Que há de dizer algum conhecido que a encontre a estas horas por aí, sozinha, a vagar pelas ruas?... Será noite fechada quando ela tomar o bonde para vir para casa. É estúpido. Compreendo perfeitamente a ausência da minha mulher, quando quem está fora de casa sou eu; mas vejo muito bem agora que não a suporto, quando quem está fora de casa é ela! O fato em si parecerá o mesmo; todavia, que diferença, Deus do céu! Supus que fosse mera fórmula literária o dizerem por aí que a mulher é a verdadeira alma do lar; entretanto, a observação é exata...
Por mais que eu disfarce, sinto uma decepção tão desgostante, não encontrando a minha, como a que pode sentir um velho metódico, muito comodista, de doloridos pés calejados, não encontrando o familiar e suavizador par de chinelos aos pés da cama, no momento em que os reclama com maior ansiedade... Para a mulher, o marido talvez seja alguma coisa mais complexa; para o marido, porém, a mulher é sobretudo um hábito... Cá por mim não posso viver sem a minha, nem quando penso nas outras.
E a boa verdade obriga-me a confessar que este caso é muito frequente em mim.
............................................................................................................Que espécie de sujeito será aquele, - parece um estafeta - , que está conversando com as crianças no portão? Ah! um telegrama!
" Lulú. 
Tua mãe muito doente. Fico a seu lado.
Tereza." 
............................................................................................................Pobre mamãe... Bem! mas enfim isto já é outra coisa; posso estar tranquilo...
- Crianças! Vamos jantar!



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